Direito & Planejamento e Gestão Socioambiental


(Índio filma os demais participantes do Kwarup em aldeia kalapalo. Foto de Beto Ricardo, 2002.)

Hobbes, em o “Leviatã” (1651), num dos clássicos argumentos da ciência política para a origem do Estado, sugere que o homem em estado natural é um ente mesquinho, egoísta e destruidor de todas as coisas.

Compondo aquele argumento com as teorias fisionômicas que evoluíram entre os séculos XVIII e XIX e, segundo Trepl (2006)[1], influenciaram a formação da idéia política sobre meio ambiente que temos hoje, chegamos então a uma espécie de “leviatã ecológico”: o homem que não vive em harmonia com a natureza, pois ele sempre tenta modificar, alterar, destruir a natureza, quebrando o equilíbrio ecológico e pondo em risco os ecossistemas.
Tal panacéia apocalíptica combina com análises dos problemas ambientais que se avolumam, agora na era da terceira revolução industrial[2]. O fato de, a cada dia, métodos e especulações teóricas procurarem alertar sobre as conseqüências da voracidade humana contra a natureza, também corrobora com essa tese.
Se é verdadeira a hipótese de que o fenômeno da sobrecarga no consumo dos recursos naturais disponíveis resulta da ação humana, igualmente pode ser verdadeira a de que há uma contra-força, ainda que não majoritária, de natureza criativa e integradora entre o homem e a natureza. 


Posto o argumento de motivação, este trabalho pretende explorar elementos do direito brasileiro – um dos campos do labor criativo humano - indagando sobre o encontro entre o homem e a natureza, destacando o recorte que o direito constitucional e as normas legais dão à questão dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

Situará o contexto e o locus do problema e em seguida o espectro doutrinário que os autores referenciados tributam para os conceitos de populações e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. 
Na segunda parte tratará de destacar elementos constitucionais e infraconstitucionais relacionados com o direito das populações tradicionais e os conhecimentos relativos à biodiversidade.
Na terceira parte serão trazidos outros elementos para a discussão, então na perspectiva das ciências sociais, em particular da sociologia e da antropologia. 

2. Contexto: as populações e os conhecimentos tradicionais relativos à biodiversidade: quem são e onde estão?


2.056 milhões de km² ou 41,5% do território da Amazônia brasileira (Ministério do Meio Ambiente - Programa de Áreas Protegidas na Amazônia - MMA-ARPA, 2010) dá o primeiro espectro da relevância do tema e com ele as possibilidades de solução de significativa parte dos problemas socioambientais que estão colocados na nova agenda da comunidade republicana brasileira.
Na referida fração territorial está localizado um mosaico formado por 405 terras protegidas e legalmente reconhecidas sob a categoria jurídica de Terra Indígena (1.087 milhões de Km² ou 21,50% da Amazônia) e 311 Unidades de Conservação (1.0 milhão de Km² ou 21% da Amazônia)[4] (Instituto Socioambiental, 2010).
De outra parte, dos 20 milhões de pessoas que habitam a Amazônia Legal (IBGE,2000), 13 milhões (63%) vivem nos centros urbanos e 7 milhões em áreas genericamente classificadas como rurais (IBGE, 2000).
Daquelas áreas rurais somente 1.7 milhões (25%) vivem e mantêm regimes de vida dependentes dos sistemas florestais e aquáticos. E não mais que 700 mil (3,5% do total da população amazônica) vivem em regimes de total interdependência com a natureza. Este é o contingente humano que se aproxima dos grupos que as ciências sociais vêm tentando conceituar como “populações tradicionais”. São indígenas, seringueiros, ribeirinhos, remanescentes de quilombos e vários outros grupos que imemorial ou tradicionalmente estabelecem regimes culturais, sociais e econômicos associados aos ciclos da natureza.
Para a aproximação do tema do presente trabalho vale dizer que este dado demográfico sugere, inicialmente, que um pequeno contingente de pessoas portadores de distinções etnoculturais e socioambientais, é responsável por gerir e zelar por uma parcela expressiva de espaços físicos depositários de alto interesse e patrimônio ecológicos, entre eles a maior parte da biodiversidade brasileira.

3. Aspectos conceituais sobre populações e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. 


Há um certo consenso nas ciências sociais de que a questão do conhecimento tradicional associado à biodiversidade é um  elemento essencial da formação da sociedade nacional. No mundo jurídico, o conceito é ainda bastante impreciso. No campo dos autores constitucionalistas o tema não encontra fôlego, em seu sentido stricto sensu.
“Populações tradicionais” chegou a ser um termo inserido no projeto de lei da Lei 9.985, de 18 de julho de 2000 (a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC), aprovado pelo Congresso Nacional, porém tendo sido objeto de veto presidencial.
Operadores do direito têm adotado o recurso da analogia e lançam mão do enunciado contido na mesma lei, que trata das “populações locais” em reservas de desenvolvimento sustentável, caracterizadas como tradicionais por terem a sua existência baseada “em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica.
A citada Lei não inclui os índios e quilombolas quando sugere aqueles elementos para o conceito de populações tradicionais, criando mais celeumas. Esta exclusão sugere que tais populações por terem regimes de vida regulados por institutos jurídicos específicos, não poderão ser assim exatamente classificadas; embora existam projetos legislativos que propõem incluir aquelas duas categorias sociais no grupo das populações tradiconais.
Embora, como dissermos, o direito positivo seja pouco elucidativo, é pois o recente Decreto nº 6.040/07 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, em seu artigo 3°, I, se referindo objetivamente a povos e comunidades tradicionais. In literis assim os qualifica:
...grupos culturalmente diferenciados, que se reconhecem como tais, possuem formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Embora haja tal enunciado legal, é a doutrina quem desenvolve os elementos para clarificar o conceito, oferecendo subsídios para que o legislador trabalhe os aspectos mais específicos relativos ao direito aplicado a estas populações.
Segundo Kishi (2004), embora ainda genérico o art. 7º, II, da Medida Provisória nº 2.186-16/2001 oferece outros elementos para a formulação conceitual do tema. Por aquele dispositivo conhecimento tradicional consiste na informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético.
Como dissemos, a definição é genérica e restritiva uma vez que reduz o entendimento de comunidade tradicional às categorias de comunidade indígena e às genericamente declaradas “comunidades locais”.
Para Santilli (2005) o conceito de conhecimentos tradicionais deve incluir interações e especificidades culturais com que são gerados e cultivados tais conhecimentos. E, segundo a autora, conhecimentos tradicionais estão inexoravelmente associados a aquilo que as ciências naturais vêm classificando  como biodiversidade.
Nas ciências naturais, notadamente na biologia, há uma tendência de redução conceitual de biodiversidade à uma tradução de extensas listas de espécies de plantas e animais, geralmente descontextualizadas do domínio cultural e socioambiental, ingredientes estes que são condicionais no conceito jurídico, ao projetar elementos que dão o sentido de conhecimentos que são construídos e apropriados material e simbolicamente pelas populações tradicionais.
Segundo Abrão (2002) também faz necessário distinguir conhecimento tradicional de obras e manifestações folclóricas. Obras de folclore são manifestações de cultura tradicional e popular. Segundo a autora esse conceito está definido na Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular aprovada pela Conferência-Geral da Unesco (Paris, novembro de 1989). Trata-se do conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundadas na tradição, expressadas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente correspondem às expectativas da comunidade.
A Convenção sobre a Diversidade Biológica (inserida no arcabouço legislativo nacional através do Decreto Legislativo nº 2, de 1994), institui em seu Preâmbulo que os signatários devem reconhecer a estreita dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas e, que é desejável repartir equitativamente os benefícios da utilização do conhecimento tradicional.
Fato é que dispomos do núcleo de um princípio jurídico que se antecipa a reconhecer que povos indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas, seringueiros, enfim vários grupos que se distinguem por  quais por notações etnoculturais e modus vivendi particulares estabelecem relações interdependentes com a natureza e, dessa forma, produzem conhecimentos e inovações.
Tais conhecimentos são de natureza literária, artística, de saberes empíricos sobre recursos medicinais, de técnicas de seleção, isolamento e reprodução de espécies, do manejo de solos, águas e recursos da biodiversidade, os quais permitem tributar para a formação do patrimônio ambiental e uma identidade cultural para o povo brasileiro e também colocam os seus sujeitos como legítimos possuidores de novos direitos.

4. Aspectos constitucionais e infraconstitucionais


O Estado Democrático de Direito tem por conseqüência considerar o veto a toda e qualquer forma de exclusão ou privilégio. Assim, a questão da proteção dos povos e conhecimentos tradicionais se remete a um conjunto de fundamentos da República Federativa do Brasil, declarados pela Carta Magna Brasileira de 1998.
Deste modo os valores de cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo formam o complexo de pesos equânimes para a formação da sociedade nacional e o seu tratamento pelo mundo do direito.
Este é o pressuposto inevitável e de arranque para entender quaisquer formulações que resultem em normas de direito.
Por conseguinte a proteção aos direitos das populações tradicionais e seu modus faciendi está inserta, lato sensu, nesse mesmo conjunto de valores da República Federativa do Brasil,   porquanto prescreve o artigo 3º da Constituição Brasileira de 1998: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV - garantir o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Na declinação de uma das mais direcionadas aplicações daqueles princípios, a Constituição Brasileira, no seu artigo 225, determina que
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo às presentes e futuras gerações.


Na averbação da expressão “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, a Constituição assevera que a titularidade desse direito é assegurada ao indivíduo como também à coletividade, assim como dever do Estado defendê-lo e preservá-lo, a favor dos indivíduos e da coletividade. São colocados num mesmo patamar de direitos e obrigações o público e o privado, imprimindo, pois, a correção de uma antiga dicotomia civilista.
Portanto, sensível a este fato, o legislador constitucional cria uma nova espécie de bem, um bem que possui natureza de “uso comum”, e por isso, insuscetível de apropriação, não guardando semelhança alguma com o instituto da propriedade que encontramos no Código Civil.
A estrutura constitucional do bem ambiental é, portanto, resultante da somatória de dois aspectos encontrados no artigo 225 da CF/88, o que constitui quase que matematicamente a fórmula desta terceira espécie de bem, qual seja: ser bem de uso comum do povo e sendo essencial à qualidade de vida de alguns em especial e de modo geral a todos.
E é nesta esteira que o texto Constitucional determina, em seus artigos 215 e 216 a proteção da cultura, apontando claramente a composição do patrimônio cultural brasileiro bem como contornando a própria identidade do povo brasileiro, uma identidade multifacetária, plural, culturalmente complexa, material e imaterial.
O legislador não só se preocupou em definir tutela específica quando afirma que será do Estado a garantia de pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, como fez uma clara definição para patrimônio cultural afirmando estes bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, incluindo as formas de expressão, os modos históricos de fazer, criar e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, objetos, documentos e conhecimentos acumulados.
Destarte, o conhecimento tradicional não pode ser confundido com o de senso comum, crença ou imaginário disperso, como tem sido a tendência. Na verdade, trata-se de um conjunto de processos de construção da cognição que permite a aproximação com o real, isto é, trata-se de uma nova forma de produção e registro de conhecimento, letrado ou não, científico ou não, enfim modos de apropriação da realidade, dotados de mecanismos próprios, de passos e de comprovação; porém, elaborada em outro contexto, com outros atores, em outro campo, como anota Moreira, apud Kishi (2009).
Ocorre que, por força da tradição patrimonialista e materialista do direito, a questão do patrimônio cultural tem recebido apenas notação de sentido material e físico. Assim, Por exemplo, o instituto jurídico do tombamento, embora recentes as recentes tendências de mudanças, tem se limitado ao processo pelo qual se declara ou até mesmo reconhece o valor cultural de determinados bens corpóreos que, devido a suas características especiais, passam a ser preservados.
Tal redução no Brasil tem sua fonte na edição do Decreto Lei nº 25/37, para a proteção dos bens culturais de natureza material; sendo este inaplicável e impróprio para a proteção dos bens de natureza imaterial, como se aduz do nova letra e espírito constitucional.
Leonel (2010) destaca ainda outra perspectiva pela qual os conhecimentos tradicionais ganharam enfoque jurídico pela sua expressão imaterial (bem cultural) de referência na formação da sociedade brasileira. Mas, frisa a autora que este destaque visa chamar a atenção para os limites do interesse econômico, que tende converter todos os bens (inclusive os culturais e sociais) em matéria prima objeto de conversão em bens de consumo e mercado.
A Magna Carta destaca importância à cultura, tomando esse termo no sentido mais abrangente, abarcando a noção de identidade e memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
Tal noção está consignada em diversos artigos, como os artigos 23, III; 24, VII; 30 IX; 225; 261; 268 (das disposições transitórias), além de destacar o capítulo oitavo do título oitavo que dá o consolida o indigenato nacional, mais especificamente nos artigos 231 e 232.




5. A Medida Provisória nº 2.186-16 e a proteção dos conhecimentos tradicionais e a biodiversidade


Como visto a biodiversidade é constituída por componentes tangíveis e intangíveis que estão intimamente ligados e é um patrimônio fortemente associado aos conhecimentos tradicionais de grupos culturais que têm forte relação e dependência dos recursos naturais em certos ambientes.
Nesse viés o legislador editou a Medida Provisória nº 2.186-16, em 23 de agosto de 2001, com o intuito definir um marco legal à proteção dos conhecimentos tradicionais em face dos perigos imanentes decorrentes da bioprospecção.
O objetivo da Medida Provisória é justamente o de regular a utilização do patrimônio genético, em particular aqueles os quais as comunidades tradicionais são portadoras, além de resguardar e preservar o correto uso destes conhecimentos tradicionais.
Santilli (2005, p. 192) define os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade pelo caráter de abrangência, ressaltando que:
...os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade abrangem desde técnicas de manejo de recursos naturais até métodos de caça e pesca, conhecimentos sobre os diversos ecossistemas e sobre propriedades farmacêuticas, alimentícias e agrícolas de espécies e as próprias categorizações e classificações de espécies de flora e fauna utilizadas pelas populações tradicionais.


Nesse sentido a MP 2.186-16/2001 é na atualidade uma espécie de estatuto da biodiversidade e do patrimônio genético das comunidades tradicionais, ou seja, é o sistema mais elucidativo de legislação destinado a garantir esse tipo de proteção de conhecimentos associados a biodiversidade e às populações tradicionais.
O regulamento tem importância no regime jurídico nacional, sobretudo quando na última década se denota uma nova realidade de exploração industrial e usos abusivos sem controle dos recursos a biodiversidade e exploração de conhecimentos tradicionais ou piratas de bio-prospecção.
Neste sentido, Santilli (2005, p. 197) destaca que “os conhecimentos tradicionais adquiriram particular importância para a indústria da biotecnologia, especialmente de produtos farmacêuticos, químicos e agrícolas".
Assim também a referida MP chama atenção para as práticas de biopirataria. Neste particular Shiva (2001, p. 32) alerta para a necessidade de proteção dos direitos de propriedade intelectual, que estão sendo utilizados como artifício de apropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade das comunidades detentoras.
Na expressão da autora, “os direitos de propriedade intelectual se constituem em uma designação sofisticada para a pirataria moderna, pois estão arraigados em uma monocultura do conhecimento que exclui outras tradições, de modo que e sua proteção sufoca as maneiras pluralistas de saber que têm enriquecido o mundo contemporâneo” (2001, p. 32).
De fato a citada MP dispõe sobre a utilização destes recursos genéticos advindos de áreas habitadas por populações tradicionais, regulando as disposições sobre tais bens, enfatizando a necessidade do Consentimento, Livre, Prévio e Informado, condicional metodológica incorporada pelos comitês de ética em pesquisa com seres humanos. Também prevê o pagamento de royalties e repartição dos benefícios, inclusive com a obrigatoriedade de acesso a tecnologia e capacitação de recursos humanos locais.
Portanto, mais que o consentimento prévio e informado, necessário também que tais comunidades tradicionais participem de todo o processo que envolva a pesquisa e exploração do material genético, ou seja, desde a celebração do contrato à execução do projeto, divulgação dos resultados e a participação nos lucros.

6. Elementos esclarecedores sob a ótica de outras ciências sociais


Estudos sociológicos, antropológicos e arqueológicos desenvolvidos em países tropicais revelam uma quantidade de práticas diferentes de pensar, relacionar-se, de produzir, construir e experimentar formas de interação do biológico com o natural (ESCOBAR, 2005).
Estudos recentes vêm demonstrando uma lógica milenar de influência do homem sobre a cobertura vegetal na Amazônia, a qual, além de ter sido extensa e intensa, teve início com a chegada dos primeiros grupos de caçadores e coletores há 11 mil anos (MAGALHÃES, 2008).
Reforçando esta tese, Clement e Junqueira (2008, p. 43) afirmam que nesses locais existiam, sobretudo, recursos da flora úteis para caçadores e coletores. No início, a ocupação de tais sítios era passageira, destinada ao aproveitamento de recursos sazonais, como frutas, raízes, peixes ou caça. Os antigos habitantes também procuravam fibras, madeiras ou pedras para fabricar ferramentas de caça, pesca, coleta e processamento de alimentos.
Com o tempo, afirmam os autores, em cada acampamento foram sendo acumuladas espécies úteis através do descarte de sementes. Algumas eram do próprio local. Outras vinham de longe. Aos poucos, esses ecossistemas antropogênicos foram se tornando cada vez mais atraentes, permitindo períodos de habitação mais longos. Isso é, um processo que as ciências naturais denominam de domesticação de espécies
A domesticação de espécies é o processo de seleção dirigida pelo homem, pelo qual, em processo empírico de longo prazo, se desenvolvem métodos de observação, acerto e erro, em que se privilegiam a busca de características quantitativas e qualitativas que respondam aos interesses da espécie humana (produtividade, uniformidade, armazenamento) em detrimento do processo reprodutivo ocorrido na seleção natural.
Este processo tornou-se uma linha evolutiva e, não raramente, também de especialização bastante peculiar. Algumas espécies sofreram alterações tão profundas nos aspectos morfológicos, genéticos e citológicos em relação aos seus ancestrais durante o processo de domesticação, que as colocam na categoria de uma nova espécie, como é o caso do milho, mandioca, batata e outras.
Tais processos seletivos também são alcançados pelos métodos científicos modernos, embora não dispensem investimentos financeiros e tecnológicos volumosos e repetições seqüenciais. Nesse sentido não é por acaso que grandes empresas procuram fazer atalhos ao buscar sintetizar conhecimentos que resultam de testes empíricos produzido nos ciclos de experiências seculares ou milenares por populações tradicionais.
Talvez por tal aptidão, por exemplo, uma das mudanças mais profundas provocadas pelos povos pré-colombianos na paisagem da Amazônia foi a criação dos solos antrópicos (terra preta e terra mulata – terras ricas em húmus). Sabe-se que em geral os solos da Amazônia são ácidos e pobres em nutrientes.
Segundo Clement e Junqueira (2008) há registros que as populações pré-colombianas também reconheciam as qualidades da terra preta, desenvolvendo práticas específicas de agricultura e manejo da vegetação associadas a este tipo de solo rico em nutrientes.
Tais “laboratórios” de testes milenares serviram como base experimental para a verificação da eficiência e da adaptação de espécies, mesmo daquelas não introduzidas pelo homem, permitindo a escolha daquelas espécies mais eficientes no sentido de respostas às necessidades humanas, as quais eram mantidas no sistema e as menos eficientes eram excluídas. (CLEMENT; JUNQUEIRA, 2008, p. 48).
Assim, por exemplo, os povos indígenas domesticaram pelo menos 47 espécies frutíferas na Amazônia. E certamente, por essa razão, a Amazônia se destaca no mapa mundial das frutas, e cujo cultivo sempre é incluído entre as alternativas para o desenvolvimento sustentável da região. (CLEMENT,2008).
Magalhães (2008, p. 38), comentando descobertas científicas recentes, sugere que as pesquisas no campo agroflorestal têm revelado que boa parte das florestas atuais, entre elas aquelas até então consideradas virgens, pode ter resultado do manejo humano e não da evolução natural. Isso quer dizer que parte significativa das paisagens florestais amazônicas seria um artefato cultural, resultado de uma ação cultural com forte influência na seleção, distribuição e até na evolução de espécies.
Confirmando elementos trazidos neste trabalho a respeito da influência das populações tradicionais na composição da biodiversidade, Diegues e Arruda (2001) sugerem que a biodiversidade pertence tanto ao domínio do natural como do cultural, mas é cultura, como conhecimento, que permite às populações tradicionais entendê-la, representá-la mentalmente, manuseá-la, retirar suas espécies e colocar outras, a enriquecendo. (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 33).
Assim também os sistemas de manejo locais são geralmente voltados para as necessidades da população local e, freqüentemente, aumentam sua capacidade de se adaptar às circunstâncias sociais e ecológicas dinâmicas (PIMBERT; PRETTY, 2000).

7. Conclusão


Procurou se destacar alguns dos elementos que elucidam as bases da tutela jurídica dos chamados conhecimentos tradicionais, então, como visto, entendido como bens ambientais culturais de natureza imaterial e materiais e, cada vez mais, exigíveis como ingredientes do novo Estado Democrático de Direito.
Explorou-se aspectos conceituais da questão dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, inclusive sob a ótica das ciências sociais, e centralmente com elementos que o traduzem a base constitucional e legal pátria sobre a questão focada no trabalho.
A abordagem do tema revelou a sua riqueza, destacadamente nos enunciados magnos que reclamam uma maior explicitação no ambiente jurídico infraconstitucional.
De todo modo ficou patente que o marco jurídico nacional constrói a proteção dessa categoria de bens associados às novas características da formação da sociedade brasileira.
Tais novas características reclamam a necessidade de serem aprofundadas, não só sob os desígnios do mandame contido nos artigos 216 e 225 da Carta Constitucional, mas principalmente para fazer atualizar os novos sentidos do direito socioambiental que já está contido no centro do marco constitucional nacional, aquele vinculado à proteção do ser humano diverso e criativo em relação à natureza, condição fundamental para a consolidação do Estado de Direito.
Este parece ser o desígnio maior dos novos direitos orientados na nova ordem da ética do novo Estado Ecológico de Direito, em construção e que conta com atores ativos, dentro das opções daquela bipolaridade da natureza “leviatânica” e ao mesmo tempo solidária do homem. A segunda indica a chance da sustentabilidade  humana.
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[1] Ludwig von Trepl, biólogo alemão, aludindo Eisel (em Die Entwiclung de Antropogeographie von einer Raumwissenschaft zur Gesellschaftwissenschaft. Urbs et Regio, 17, 1980, 690p) e Michel Foucault (em Die Ordnung der Dinge. Frankfurt/Main. 1974), argumenta que alguns elementos da formação histórica da idéia científica sobre os seres contribuíram com a formação do conceito de meio ambiente que temos hoje. Um desses elementos é o de a origem do ideal conservador da natureza, com a equiparação do racional ao natural, estava associado à idéia de que deviam ser reconhecidos os limites estabelecidos aos homens pela natureza. Assim, se até o século XVIII a idéia fisionômica de seres vivos consistia em uma estrutura visível, a partir do século XIX a estrutura visível dos seres passou a ser vista apenas como um indício superficial de algo invisível que realmente passaria a fazer parte da compreensão do ser em seu todo. A partir de então a vida, no sentido ecológico, passou a ser entendida como um complexo de interações dos seres com tudo o que está à sua volta. E segundo Trepl, essa nova idéia é a síntese da mudança da concepção do modelo fisionômico de Humbold para o de Grisebach. Essa bifurcação do pensamento, sugere ele, também marcou a divisão do pensamento ambientalista até os nossos dias.
[2] Embora haja controvérsia sobre quais são os fenômenos e o período histórico exato que caracterizam a chamada terceira revolução industrial, pesquisadores do campo da economia e história se alinham no sentido de que uma nova fase de desenvolvimento técnico-científico tem ocorrido a partir do último quartel do século XX. Essa nova revolução se deu com a introdução da informática, microeletrônica, robótica, cibernética, genética, entre outros, que fez com que o processo de produção se tornasse novamente modificado. Essa modificação resultou, em última análise, na otimização dos processos produtivos e, também, sobrecarga na utilização de matérias primas, geração de resíduos e escalas progressivas de desemprego.
[3] O termo foi utilizado por William Rees, um ecologista e professor da Universidade de Colúmbia Britânica. Em 1995, Rees e Mathis Wackernagel publicam o livro chamado Our Ecological Footprint: Reducing Human Impact on the Earth. A “Pegada Ecológica” sugere métrica para calcular a área de espaço produtivo necessário para sustentar o estilo humano de vida.
[4] Das unidades de conservação 50,05% são federais e 49,95% estaduais; 34,95% classificadas como de proteção integral e 65,05% de uso sustentável e, desta ultima fração, maiormente utilizadas por comunidades tradicionais
[5] Num instigante ensaio publicado nada menos que pela respeitável revista “Nature”, liderou um grupo de pesquisadores norte-americanos, brasileiros e europeus para estimar o valor econômico dos recursos naturais em 16 biomas da biosfera. Pelo seus cálculos o valor econômico global (estimado para os bens e os serviços ambientais da biosfera) variou entre 16 e US$54 trilhões/ano, com média de US$33 trilhões/ano. O maior valor atribuído foi de US$ 14.785, correspondente aos banhados e as terras úmidas. Fonte: Nature 387, 253 - 60 (15 de maio de 1997); disponível em: http://www.nature.com/cgi- taf/DynaPage.taf?file=/nature/journal/v387/n6630/abs/387253a0.html&dynoptions=doi1069270202
[6] Se referindo às populações tradicionais e aos seus direitos, Santos sugere que “Não é por coincidência que 75% da biodiversidade do planeta se encontra em territórios indígenas ou de afro-descendentes. (...) A relação destes povos com a natureza permitiu criar formas de sustentabilidade que hoje se afiguram decisivas para a sobrevivência do planeta. É por essa razão que a preservação dessas formas de manejo do território transcende hoje o interesse desses povos. Interessa ao país no seu conjunto e ao mundo”. Eis, segundo o autor, porque um passado injusto (aqui ele fala dos atos jurisdicionais),“não é possível, pelo menos por algum tempo, reconhecer a igualdade das diferenças (interculturalidade) sem reconhecer a diferença das igualdades (reconhecimentos territoriais e ações afirmativas).”
[7] REDD é a sigla da expressão em inglês Reducing Emissions from Deflorestation and Degradation – ou no português “reduzir emissões provenientes de desflorestamento e degradação”. A idéia básica por trás de REDD é a de que os países que estão dispostos e são capazes de reduzir as emissões provenientes do desflorestamento deveriam ser compensados financeiramente por isto. O conceito está sendo discutindo dentro da Conferencia das Partes (COP-ONU) da Convenção-Quadro sobre mudanças climáticas da ONU. A proposta evoluiu da COP 11 (2005) e durante a COP-13, que ocorreu em 2007, foi definido que uma abordagem ampla para combater as mudanças climáticas que deveria incluir políticas e incentivos em questões relacionadas à redução de emissões provenientes de desmatamento e degradação de florestas em países em desenvolvimento.
[8] O pousio é o descanso ou repouso dado às terras cultiváveis, variando esse descanso de um a três anos, interrompendo-se as culturas para tornar o solo mais produtivo.

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