Direito & Planejamento e Gestão Socioambiental

2008 - Villi Seilert

Desmatamento (fonte: globoamazonia.globo.com)

1. Introdução:
Em tempos de inquietação com os efeitos que se sugerem catastróficos do aquecimento global, a questão do bom homem e a natureza ganha novo corolário: não é exagerado afirmar que uma parte significativa dos guardiões do patrimônio socioambiental ganha relevância diante do desafio da vida em escala planetária.

Nesse contexto as políticas que oxigenam a expansão econômica insustentável sobre os biomas, ao avançar sobre os territórios de alto interesse ecológico, inclusive os tradicionalmente habitados, expõem novos limites da tensão entre interesses inversamente diferentes sobre a natureza. E um dos principais vetores dessa tensão é o grau de concessões que as populações tradicionais serão capazes de fazer para arcar com um passivo para o qual não são tributários.

Ou seja, parto do pressuposto que as populações tradicionais não têm mais como transigir diante de uma gramática de desenvolvimento que avança sobre seus territórios, bens e serviços ambientais que, afinal, num cenário onde se discute os limites da insustentabilidade humana, são contabilizados como novos ativos capazes de compensar parte dos desequilíbrios produzidos pelo atual modelo de desenvolvimento.
Porém, enquanto se evidencia que os limites da tolerância estão se esgotando, de outra parte, não se verificam nos instrumentos criados pelas políticas ambientais, indigenistas e agrárias dispositivos capazes de gerar níveis de satisfação para ambas as partes. Afinal até aqui só se conhecem soluções que satisfazem a terceiros e, só tangencialmente aos próprios benfeitores.

Então, nosso outro pressuposto é que nenhum dos atuais instrumentos de aplicação de mecanismos compensatórios, seja os de natureza administrativa em aplicações de salvaguardas ambientais, tampouco os resultantes de aplicações da obrigação civil de reparação do dano, absorve variáveis que, em última análise, estão fora das “amenidades ambientais” (Alier, p.41) típicas dos conflitos econômicos distributivos e patrimonialistas do desenvolvimento. Queremos dizer que nem mesmo mobilizadas pelo otimismo (ou o “credo da ecoeficiência” - Alier, p. 43), levam em conta as instituições da culturalidade dos grupos, nem as implicações de sua alteridade como sujeitos de direitos “especiais”, que, nalguns casos, antecedem ao próprio Estado - como é o caso da eficiência que se denota no arranjo jurídico criado pelo legislador brasileiro pelo instituto da posse imemorial, permanente, inalienável e sob domínio da União para terras indígenas. Eis, em nossa opinião, a positividade em termos de segurança para a relativa inviolabilidade de 12% do território nacional destinados a usufrutos especiais indígenas.

Outro pressuposto é que grupos chamados de populações tradicionais, aqui se podem também incluir camponeses que coexistem com a natureza, têm assegurado a conservação da biodiversidade. Este é um novo elemento que infere o poder que têm esses grupos sobre o “destino comum”. Nesse sentido ilustra Boaventura S. Santos (2008):
“não é por coincidência que 75% da biodiversidade do planeta se encontra em territórios indígenas ou de afro-descendentes. (...) A relação destes povos com a natureza permitiu criar formas de sustentabilidade que hoje se afiguram decisivas para a sobrevivência do planeta. É por essa razão que a preservação dessas formas de manejo do território transcende hoje o interesse desses povos. Interessa ao país no seu conjunto e ao mundo. Eis, segundo o autor, porque um passado injusto (aqui ele fala dos atos jurisdicionais),“não é possível, pelo menos por algum tempo, reconhecer a igualdade das diferenças (interculturalidade) sem reconhecer a diferença das igualdades (reconhecimentos territoriais e ações afirmativas).”

Então, suspeitamos que uma das soluções do problema da eficácia dos mecanismos compensatórios está relacionada com a necessidade de se ampliar, através das políticas públicas, os critérios de abordagem dos territórios e dos bens e serviços socioambientais produzidos pelas comunidades que os habitam. Afinal, em última análise, são essas comunidades diretamente responsáveis pela geração do ativo ecológico que tais espaços representam. A segunda solução diz respeito a mecanismos de inclusão desses grupos como atores contratuais.

Assim por exemplo, a produção de um Plano de Gestão Ambiental e o dimensionamento dos impactos sociais e ambientais com suas medidas mitigatórias previsíveis nos Estudos e Relatórios de Impactos Ambientais (EIA-RIMA), aqui considerando os empreendimentos que avançam sobre áreas de interesse ecológico habitadas, sugerem critérios de planejamento e controle que ultrapassem os métodos puros de valoração econômica (geralmente nem ai chegam), até por que estes não têm mostrado versatilidade diante da incomensurabilidade dos direitos coletivamente definidos.

Nesse trabalho nos propomos a enunciar alguns elementos interdisciplinares para a abordagem do problema, que aqui não se esgotará. Trataremos de trazer argumentos de autores que a partir do marco da “eco-sócio-economia” oferecem pistas para uma discussão sobre os instrumentos de solução compensatória, atualmente aplicados, seja pelas políticas públicas - em especial nos projetos de infra-estrutura - seja aqueles aplicados no ambiente jurisdicional, traspassando a ótica do universalizado “princípio do poluidor-pagador” e transcendendo para o emergente “princípio do conservador-recebedor”.
Também comentaremos brevemente alguns dos principais mecanismos disponíveis e regulados pelo marco legal brasileiro para soluções de compensação e pagamentos de serviços ambientais, mas que não delineiam portais de acesso das populações tradicionais.

Evidente que a questão da compensação inclusiva, e nalguns casos sugerindo mecanismos especiais, longe da simplicidade, requer o enfrentamento de vários problemas conexos que não poderemos aqui aprofundar. Afinal, quem valora e o que é valorar? Como valorar o supostamente intangível ou incomensurável? Quem paga? Quanto se paga e como se paga? Quem recebe? Como receber? Como e por quem será usufruído, direta, individual ou coletivo? Quem representa quem e como representar? Como estabelecer variáveis factíveis de codificação valorativa no âmbito dos instrumentos de planejamento e geração de soluções negociadas com as partes interessadas? Afinal, a quem interessa essa questão?


2. Populações tradicionais, unidades de conservação e conflitos de interesses na conservação dos recursos naturais.

Aprofundar a discussão sobre o conceito de “populações tradicionais” poderia se tornar infrutífero, considerando a diversidade de opiniões sobre o tema. Não obstante cabem alguns esclarecimentos para efeito dos limites de nossa abordagem.

Importante é dizer que não é possível estabelecer uma única matriz lógica para o entendimento do que possa se classificar como populações tradicionais.

O Brasil é marcado por uma complexa sociodiversidade. E dentro dessa diversidade estão as múltiplas sociedades indígenas, cada uma delas com formas próprias de inter-relacionamento com seus respectivos ambientes geográficos, formando um dos núcleos mais importantes dessa diversidade, assim, só para outro exemplo, como centenas de remanescentes das comunidades dos quilombos, espalhadas por todo o território nacional, outro significativo núcleo.
Essa conceituação genérica expande-se numa profusão de grupos humanos que podem ser também chamados, a depender de quem os nomina (afinal via de regra não são auto-nominações), de babaçueiros, caboclos, caiçairas, caipiras, campeiros, açorianos, jangadeiros, pantaneiros, pampeiros, pescadores artesanais, praieiros, sertanejos, pomeranos, ciganos, varjeiros, geraizeiros, sisaleiros e tantos outros (Diegues e Arruda 2001).

Nesse grande leque de grupos humanos costuma se encontrar no ambiente acadêmico, diga-se de passagem, mecanismos de identificação grupal sob diversas categorias, como populações, comunidades, povos, sociedades, culturas, sistemas, que por sua vez, não raro, estão adjetivadas com tradicionais, autóctones, rurais, locais, residentes (Vianna 1996 e Barretto Filho. 2001).

De todo modo nos parece menos importante uma definição fechada, na medida em que qualquer dessas combinações é problemática devido à abrangência e diversidade de grupos que englobam.
Nem mesmo dentro de um recorte etnográfico é possível essa precisão, na medida em que, por exemplo, as diferenças entre os indígenas, os quilombos, os caboclos, os caiçaras e outros grupos classificados como tradicionais, são tão grandes que não parece viável tratá-los dentro de uma mesma classificação, como sugere Paul Litlle (2002).

Intentada a superação do nosso problema conceitual sobre populações tradicionais, adicionemos o fator territorial como elemento que se relaciona diretamente com um dos elementos temáticos que nos propomos: populações tradicionais e unidades de conservação.

Essa questão do referencial territorial abre pistas para entender um dos nascedouros do problema das divergências a respeito das possibilidades de equilíbrio entre grupos populacionais e a natureza, que, por sua vez, tem importante ingrediente histórico na ideologia de povos além-mar.

Seguramente essa dissensão também deságua nos ambientes de formulação dos critérios de inclusão e/ou exclusão das populações humanas que vivem ou viviam antes da apropriação das áreas pelo Estado e se revelam nas soluções adotadas pelo Poder Público para compensar as populações por perdas nas desapropriações compulsórias, quando na criação e implantação de sistemas de gestão de Unidades de Conservação.

Não por outra razão que os critérios de compensação (aqui com sentido estrito de indenização) sobre desapropriações compulsórias têm sido pendulares e sua aplicação, emergida da equação do conjunto de forças que operam o direito substantivo, as operações contábeis e as articulações dos interesses econômicos. No concreto essa equação produz pesos e medidas desiguais.

Se projetado para atender populações não-tradicionais, que possuem títulos de domínio imobiliário, o custo das desapropriações tem sido inflacionado por manobras jurídicas e econométricas controladas por uma “indústria de indenizações”. Isso, por exemplo, é evidente nos processos de desapropriação e indenização de áreas litorâneas, onde as desapropriações em relação aos parques têm alcançado valores esbanjadoramente superfaturados. Produzem-se precatórios impagáveis sob a lógica do mercado (Arruda, 1997).

Porém, se noutra direção, tais cálculos se projetam para compensar a remoção das populações tradicionais de áreas transformadas em UC de uso restrito, então, não se aplicam parâmetros econométricos minimamente razoáveis.

Não raro ocorrem também problemas de gestão, decorrentes da superposição de unidades de conservação com áreas indígenas e outras unidades destinadas ao uso, como as reservas extrativistas e territórios de quilombolas, se bem que, no caso dos indígenas, a questão se diferencie das populações tradicionais não-indígenas, já que há legislação que define especificamente o que é terra indígena.

Vale dizer que estes problemas replicam-se em praticamente todos os países da América Latina, África e Ásia (idem) e vêm se tornando um tema recorrentemente debatido por organismos governamentais, não-governamentais e de pesquisa científica, em nível nacional e internacional.

A esse respeito vale considerar, por exemplo, as tentativas de estabelecer diretivas operacionais dos principais organismos de financiamento internacional. No caso do Banco Mundial a Diretiva Operacional 4.10 evoluiu para a 4.20, como mecanismo preventivo de autodefesa do Banco para suas políticas de créditos em países que contam com povos aborígenes.

Sugere Arruda que “a oposição populações tradicionais versus necessidades de conservação dos recursos naturais, cada vez mais é traduzida pela crítica às características do modelo de conservação vigente e pela procura de uma compreensão mais precisa destas populações, de seu padrão de ocupação do espaço e utilização dos recursos naturais”.

Outra questão que se coloca é que as populações alijadas da economia, ao longo da formação do Brasil, adotaram o modelo da “cultura rústica” (Darcy Ribeiro, 1995), refugiando-se nos recantos mais remotos e menos povoados, com terras e recursos naturais mais abundantes, permitindo sua reprodução física e cultural, com variantes locais determinados pela cultura ambiental e histórica das comunidades que neles persistem.

Processo paralelo ocorreu com os povos “desindianizados” (idem) que se mantiveram como comunidades relativamente fechadas, mas, perdendo sua identidade étnica, convergiram para o modelo da cultura rústica.
Segundo Arruda (idem) esse processo é visível ainda hoje nas populações ribeirinhas do rio Amazonas, sobreviventes dos processos de genocídio e etnocídio promovidos pelos colonizadores nessa região a partir do século XVII e em várias comunidades litorâneas do nordeste brasileiro.

É de destacar que a questão ambiental nos últimos anos trouxe nova luz sobre esses modos rústicos de produção, ao deslocar o eixo de análise do critério da produtividade para o do manejo sustentado dos recursos naturais, evidenciando a positividade dos modelos indígenas de exploração dos recursos naturais e desse modelo da cultura rústica.

Tornou-se, portanto, mais evidente que as populações tradicionais, e de modo mais explicitado as sociedades indígenas, desenvolveram através da observação e experimentação um extenso e minucioso conhecimento dos processos naturais e, até hoje, podemos dizer, as melhores práticas de manejo adaptadas às florestas tropicais (Meggers, 1977).

No entanto, embora estas populações corporifiquem um modo de vida tradicionalmente mais harmonioso com o ambiente, vêm sendo desconsideradas como contribuintes para a elaboração das políticas públicas regionais (ministérios, programas e projetos) e, por outro lado, sendo as primeiras a serem atingidas pela destruição ambiental e as últimas a se beneficiarem das políticas de conservação.
Essa questão no Brasil se evidencia de modo mais conflituoso dentro da política de implantação de Unidades de Conservação – UC, como uma das principais estratégias para a conservação da natureza, como veremos a seguir.

3. Criação de Unidades de Conservação - conflito conceitual originário
A prática de criar Unidade de Conservação deriva da concepção de áreas protegidas construída nos Estados Unidos, com o objetivo de proteger a vida selvagem ameaçada pelo avanço da civilização urbano-industrial. (Santilli e ALier)

Esse modelo expandiu-se logo em seguida para o Canadá e países europeus, consolidando-se como um padrão mundial, principalmente a partir da década de 60, quando o número e a extensão das áreas protegidas ampliaram-se enormemente em todo o mundo.

A idéia que fundamentou este modelo é a de que a alteração e a domesticação de toda a biosfera pelo ser humano são inevitáveis, sendo necessário e possível conservar frações do mundo natural em seu estado supostamente originário, antes da intervenção humana. Lugares onde o ser humano possa reverenciar a natureza intocada, refazer suas energias materiais e espirituais e pesquisar a própria natureza (Arruda, 1997).
Na pratica brasileira essas áreas, uma vez criadas, são sujeitas a um regime de proteção externo, com território definido pelo Estado, cujas autoridades decidem as áreas a serem colocadas sob proteção e sob que modalidade e, unilateralmente, formulam e executam os respectivos planos de manejo. As pessoas que vivem no interior ou no entorno das áreas não participam em nada destas decisões. Mais que isso, as decisões costumam ser mantidas sem publicidade até sua transformação em lei, justamente para evitar movimentações sociais que possam criar embaraços para os planejadores oficiais.

Essa concepção parte da idéia originária de que as comunidades humanas locais seriam incapazes de desenvolver um convício eficiente com os recursos naturais, e finalmente, que estas áreas devem ser mantidas num estado de natural equilíbrio. Revela-se, nesse ponto, um nítido conflito entre a visão do “culto ao bom silvestre” e a visão da “ecoeficiência” (Alier, 2007).

Essa concepção de Unidades de Conservação, ainda que possa ser relativamente adequado aos EUA, dado a existência de grandes áreas desabitadas, sua transposição para o Terceiro Mundo parece mostrar-se problemática, pois mesmo as áreas consideradas isoladas ou “selvagens” abrigam populações humanas.
Por essa concepção e modelagem se assenta a idéia de que as populações devem ser retiradas de suas terras, para que estas possam ser transformadas em unidade de conservação para benefício das populações urbanas (turismo ecológico), das futuras gerações, do equilíbrio ecossistêmico necessário à humanidade em geral, da pesquisa científica, mas muito pouco ou nada às populações locais.

Ocorre que, quando as populações não abrem mão e resistem, então suas necessidades de exploração dos recursos naturais inerentes a seu modo de vida e sobrevivência passam a ser questionados, quando não raro “criminalizados” e, assim, impedidas de explorar per si os recursos naturais de forma sustentável e garantir sua reprodução sócio-cultural e econômica.

Em situação assim, passam a serem então beneficiados os grupos que comercializam irregularmente no mercado mais amplo os produtos de extração predatória, em detrimento da preservação da bio e da sociodiversidade e, finalmente, da credibilidade e aceitação dos ideais de conservação ambiental.
O cenário poderia seria bem pior se não houvesse aberturas para alternativas ao modelo. Tal abertura está progressivamente tomando corpo através das iniciativas de criação das reservas extrativistas, do reconhecimento de terras de quilombolas e das propostas de criação de modalidades de áreas de conservação de múltiplos usos, e mais recentemente, enfim, das “Reservas de Desenvolvimento Sustentável”.



4. Dos princípios legis que remetem à justiça de compensar por lesão aos bens de interesse socioambiental.
O “poluidor-pagador”

Como vimos, a teoria econômica neoclássica e os métodos valorativos baseados na eco-eficiência sugerem que os custos sociais externos acompanham o processo produtivo (ou o custo resultante dos danos ambientais) devem ser internalizados. Vale dizer que os agentes econômicos devem levá-los em conta ao elaborar os custos de produção e, conseqüentemente, assumi-los.

Essa operação combinatória passou a ser a raiz do que, no ambiente doutrinário do Direito, se definiu como “o princípio do poluidor-pagador”. Ou seja, o mecanismo objetivo que imputa ao poluidor o custo social da poluição por ele gerada, engendrando um mecanismo de responsabilidade por dano ecológico abrangente dos efeitos da poluição, não somente sobre bens e pessoas, mas sobre toda a natureza. Na verdade uma redundância do princípio da reparação do dano, instituto clássico advindo já do Direito Romano.

Cristiane Derani (1997) e Eddis Milaré (2001), falam de “externalidades negativas”, como os fatores embora resultantes da produção, são, ao contrário do lucro, assumidos pela coletividade, ou seja, o que chamam da privatização de lucros e socialização de perdas.

A aplicação prática do princípio do poluidor-pagador procura-se corrigir este custo remetido à sociedade, impondo-se sua internalização. Não objetiva, por certo, tolerar a poluição mediante um preço, nem se limita apenas a compensar os danos causados, mas sim, precisamente, evitar o dano ao ambiente.
Nesta linha, o pagamento pelo lançamento de efluentes, por exemplo, não alforria condutas inconseqüentes, de modo a ensejar o descarte de resíduos fora dos padrões e das normas ambientais. A cobrança só pode ser efetuada sobre o que tenha respaldo na lei, pena de se admitir o direito de poluir.

Portanto, trata-se do princípio poluidor-pagador, e não pagador-poluidor (pagou, então pode poluir). A colocação gramatical não deixa margem para equívocos ou ambigüidades na interpretação do princípio.
A Declaração do Rio, de 1992, colocou a matéria em seu Princípio 16, dispondo que: “As autoridades nacionais deveriam procurar fomentar a internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em conta o critério de que o que contamina deveria, em princípio, arcar com os custos da contaminação, tendo devidamente em conta o interesse público e sem distorcer o comércio nem as inversões internacionais”.

No Brasil, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981, acolheu o princípio do “poluidor-pagador”, estabelecendo, como um de seus fins, “a imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados”.

Em reforço a isso assentou a Constituição Federal que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.

Comparativamente a legislação nacional, no que tange a esse princípio, foi mais abrangente do que em vários países, vez que na sua formulação estão também contemplados os mecanismos de repressão penal e administrativa.

Em que pese a sua destacada influência sobre a legislação da maioria dos países de políticas ambientais mais avançadas e incurso no marco legal nacional, servindo como lastro doutrinário para as mais diversas medidas compensatórias até aqui aplicadas pelo Poder Público, não nos parece ser suficiente para as novas dimensões do problema enunciado nesse trabalho.

É de se notar as limitações do princípio, quando não da sua corrupção - como no caso da aplicação dos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo - MDL, instrumental nascido no ambiente do Protocolo de Kyoto - como também, dos limitantes do regime de compensação ambiental inserido na Lei 9985 de 18/06/2000 – SNUC -, ou dos instrumentos reparatórios comumente acionados pelo Estado na sua função jurisdicional, pós 1988.

Por outro lado, ainda que não se disponha de regulação legal substantiva, nem base doutrinária abundante, tampouco estudos mais aprofundados sobre o subjacente principio do “provedor-recebedor”, autores do quilate de Peter May (2007) adiantam que a Lei das Unidades de Conservação antecipou a aplicação concreta do novo princípio, avançando no sentido de parâmetros inovadores e preventivos que preenchem em certa medida a vacância social, ou seja, a centralidade humana no ambientalismo.

O pagamento por serviços ambientais - o principio do “provedor-recebedor”:
Toma corpo nos ambientes de planejamento da gestão ambiental a idéia que se deve evitar a excessiva dependência de dotações orçamentárias para conseguir fluxos estáveis de recursos financeiros para proteção do meio ambiente. Na verdade essa é a verdadeira motivação. Outro elemento consensual é que se há necessidade de instituir cobranças financeiras aos agentes econômicos que causem dano à base de recursos naturais, seja por reduzir a sua quantidade ou por degradar sua qualidade – o velho princípio do poluidor pagador.

De outra parte o conceito de pagamento pelos serviços ambientais surge como forma de concretizar os dois objetivos mencionados: gerar recursos para a gestão ambiental através da cobrança dos agentes que usam excessivamente os recursos naturais.

Sob o enfoque econômico o princípio básico dos PSA é o mesmo que norteia as ações convencionais de política ambiental: o meio ambiente fornece um enorme escopo de bens e serviços de interesse direto ou indireto do ser humano, mas que não necessariamente se revertem em benefícios financeiros aos agentes econômicos que controlam, direta ou indiretamente, o fornecimento desses serviços. Cria-se, então, o que é chamado na economia de “falha de mercado”: a busca pela opção que garante a maior lucratividade privada resulta em situações socialmente piores.

A diferença está na proposição de soluções: ao invés de estabelecer formas diretas de regulação baseadas em condutas (padrões de emissão, licenciamentos, melhor prática, etc.), busca-se internalizar os custos (ou benefícios) que não são contabilizados privadamente, chamados de externalidades, de modo que os geradores primários desses danos (ou benefícios) sejam penalizados (ou beneficiados) por tais ações.
No caso específico de serviços ambientais relacionados à compensação para áreas ocupadas por populações tradicionais de interesse ecológico, um sistema de PSA pode ser estabelecido quando os que se beneficiam por tais serviços realizam pagamentos aos proprietários ou aos legítimos usufrutuários, e não somente aos órgãos gestores das áreas em questão, criando um incentivo pecuniário que permitiria a compensação do serviço ambiental oferecido por aquele sistema socioambiental.

Os pagamentos podem ser vistos como uma fonte adicional de renda, mas, sobretudo, é forma de compensar os custos, nem sempre pecuniários, implicados nas práticas conservacionistas dos sócio-eco-sistemas que permitem o fornecimento dos serviços ecossistêmicos universais.

Esse modelo complementa o princípio do “poluidor-pagador”, dando foco ao fornecimento do serviço, onde o usuário paga e o preservador recebe (Pagiola et Al. 2005).

Porém, o estabelecimento de PSA no sentido das práticas que estão sendo institucionalizadas atualmente, se defronta com alguns problemas. O primeiro é que haja clara identificação de que ao menos um serviço ambiental esteja beneficiando algum agente interessado em garantir a manutenção de tal serviço, disponibilizando-se a pagar por ele, seja de forma voluntária ou pela criação de mecanismos que imponham o pagamento. Nesse ponto ocorre o ponto de exclusão de possibilidades para territórios cuja definição legal inclui populações humanas e destinação de uso exclusivo: como é o caso de terras indígenas, reservas extrativistas e terras de quilombolas, uma vez que nesse caso, a maioria dos serviços ambientais são oferecidos não à beneficiários específicos, mas à universalidade humana.

Em casos especiais se pode distinguir interessados mais específicos e diretos, como no caso da observação da melhor qualidade dos mananciais de águas ou de espécimes da biota que se encontram em territórios habitados por populações tradicionais.

Problema adicional resulta em definir quem será pagador e quem será a recebedor. Quais seriam os bens, sua discriminação, quantificação e valoração. Ou qual a estrutura de representação dos interessados dentro dos atos contratuais, já que implicariam em atos negociais e na medida em que os PSA lidam com externalidades que não têm preço de mercado. Outro problema está relacionado à institucionalidade desses processos contratuais em sentido amplo.

De todo modo, o maior entrave parece estar associado à valoração desses serviços, mesmo que sob de técnicas da economia ecológica - valoração dos recursos ambientais que resultam de modelos de gestão praticadas por populações tradicionais.

Sem ainda considerar aspectos específicos relacionados com o nosso tema (benéficos compensatórios para populações que usufruem áreas de interesse ecológico), conflitos reais põem em risco o processo de pactuação entre as agências ambientais e o setor empresarial, indicando custos sociais significativos derivados das disputas de interesse visando à consolidação do instrumento.

Importa, independentemente do aprofundamento do mérito da questão relacionada com a aplicação do princípio do “conservador-recebedor” levado em prática pelas modalidades de pagamentos por serviços ambientais, que, diante da nova realidade, incluindo o novo balanço das responsabilidades com o desenvolvimento sustentável, aquele princípio estabelece um elo de transição para uma solução progressivamente eficaz, desde que se crie arranjos de efetiva inclusão dos grupos benfeitores, ou seja, as populações tradicionais.


5. Mecanismos compensatórios nas estratégias de redução das emissões por desmatamento e degradação.
REDD

As discussões a respeito da questão climática abriram um flanco de busca de oportunidades. Uma dessas oportunidades surge em torno do que se está chamando de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação – REDD. Defensores do conceito sugerem que é possível resolver um ponto crucial na proteção das florestas: dar valor à mata em pé – eis uma iminente possibilidade para grupos tradicionais.

Nessa questão estão em voga as negociações do regime internacional do clima até o ano de 2012, quando termina o primeiro período de compromisso do Protocolo de Kyoto. Decorre do fato de que a Conferência de Bali, em 2007, traçou um horizonte de dois anos para que se pactue como os países irão combater e se adequar aos efeitos do aumento da temperatura.

Parte do pressuposto de que se os países desenvolvidos têm a maior responsabilidade pelo problema, há novos atores entre os grandes emissores de gases-estufa, e o Brasil, como se sabe, é protagonista com as emissões pelo desmatamento.

Enfim, pressupõe programas pelos quais os países com florestas tropicais que reduzirem seu desmatamento, de modo comprovado, passam a recebem uma compensação financeira, um pagamento por esses serviços.
Em termos de oportunidades, o grande potencial do REDD é também o mais polêmico, como também o que mais atrai interesses, pois pode estimular formas de compensação para quem preserva a floresta, sejam governos ou comunidades, embora ainda não se saiba exatamente como as comunidades possam participar diretamente.

Vincular os programas baseados no REDD ao mercado de carbono tem sido uma tendência entre os ambientalistas. O governo brasileiro propõe criar um fundo voluntário de doação, onde os países ricos colocariam contribuições na medida em que os países com florestas comprovem o quanto controlam o desmatamento.

Em antecipação o Banco Mundial tomou a iniciativa de criar um fundo de carbono, cujos recursos estão destinados para custear processos de capacitação de comunidades e testes de possibilidades através de projetos-piloto de redução de emissões por florestas.

Porém, o grande problema do REDD com relação ao nosso tema é definir meios instrumentais que sejam capazes de oportunizar a participação pactuada das populações tradicionais, especialmente daquelas que não dispõem de institutos de representação e de direitos específicos garantidos.

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