Direito & Planejamento e Gestão Socioambiental


Villi Seilert em: "O DESFLORESTAMENTO E SUAS CORRELAÇÕES
NO ALTO-XINGU: a essencialidade dos conhecimentos tradicionais para o equilíbrio ecológico do Planeta Terra." Dissertação de mestrado, UCB, dezembro de 2011.


Mesmo que se possa dizer que as atividades humanas tenham causado a degradação dos ecossistemas e a perda da biodiversidade, isso não se aplica a todos os lugares e situações. Bhagwat et al. (2005) apontam que na Índia pesquisas notificaram índices de biodiversidade em bosques sagrados e em áreas de plantações multi-específicas, nos mesmos níveis encontrados em áreas protegidas.
Os citados autores observam que florestas sagradas mantidas pelos costumes dos povos tradicionais e paisagens multifuncionais produzidas sob sistemas seculares de usos e cultivos tradicionais, podem ser tão importantes do ponto de vista do equilíbrio ecológico quanto àquelas áreas protegidas por estratégias formais de conservação, como das políticas de implantação de unidades de conservação. Isto quer dizer que existem habitats que emergem de atividades de grupos humanos em ciclos de manejo da terra. Neste caso específico podem se configurar as terras situadas no espaço geográfico conhecido como Parque Indígena do Xingu, objeto da presente investigação.
Esta questão de fundo tem outras conotações. Uma delas diz respeito à relevância dos conhecimentos tradicionais para a manutenção do equilíbrio ecológico em escala local e global, assunto que tem recebido atenção crescente no mundo da pesquisa acadêmica.
No plano internacional a pesquisa sobre o tema vem recebendo fôlego através de multifacetárias linhas de investigação acadêmica. Numa delas, com o enfoque do conhecimento aplicado à gestão de recursos naturais, Berkes et al. (2000) chegam a comparar os conhecimentos tradicionais com as práticas científicas contemporâneas de gestão baseada nos ecossistemas, na medida em que eles incluem princípios da gestão de sucessão, gestão de paisagem, rotação de recursos e gerenciamento de várias espécies da fauna e da flora.
Na mesma linha de raciocínio Lewis e Ferguson (1988), numa concentrada investigação comparativa entre várias culturas dos mais diferentes pontos do planeta, demonstram que muitos e diferentes grupos tradicionais, praticam o manejo do fogo como um recurso eficaz de gestão do solo. Segundo os autores existem notáveis similaridades nas estratégias funcionais utilizadas por esses grupos em áreas tão diversas como no caso de povos localizados no Noroeste do Pacífico dos Estados Unidos, na zona Centro-Oeste Boreal do Canadá, na Tasmânia, como noutras partes do mundo.
Em outro estudo semelhante Davidson-Hunt e Berkes (2003) anotam que a aplicação de conhecimentos autóctones varia desde a clássica agricultura itinerante da Amazônia, até o sistema Kumerachi das florestas temperadas do planalto mexicano, até os povos indígenas nas florestas boreais canadenses.
Sintetizando a confluência entre os conhecimentos tradicionais e a ciência, estudos de Kates e associados (2001) defendem que a investigação científica no ambiente das interações humanas está forjando a emergência do que chamam de uma nova ciência da sustentabilidade. Neste conceito os autores sugerem que o bem-estar da sociedade humana está estreitamente relacionado com o bem-estar dos ecossistemas naturais. Nesta confluência a ciência está necessitando cada vez mais de recursos intelectuais que levem em conta o conhecimento das populações locais. É o que Pandey (2002) reiteradamente chama de etnociência.
Por sua vez Tilman (2000) em importante estudo no campo da ecologia humana propugna a relevância de princípios éticos e políticos inovadores para ações dirigidas para a conservação da biodiversidade e a manutenção das funções dos ecossistemas, sugerindo que tal ética não decorre de forças espirituais ou divinas, mas sim de práticas sociais.
Em estudos semelhantes Cox (2000) e Pandey (2002) concluem que sistemas de conhecimento tradicional local estão desaparecendo a um ritmo que, em sendo assim mantido, não permitirá saber o valor que estes sistemas representariam em comparação com o que já representaram para a sustentabilidade do equilíbrio ecológico global em tempos passados.
No Brasil a pesquisa sobre a interface dos conhecimentos tradicionais com a sustentabilidade ecológica tem merecido atenção de estudos mais recentes, maiormente ancorados nas disciplinas da antropologia, direito ambiental e economia ambiental.
Cavalcanti (2002), em um estudo com enfoque econômico, observa que existem alternativas às formas inspiradas na teoria econômica mecanicista que tentam explicar como os seres humanos lidam com as escolhas que têm de fazer na alocação de recursos, na distribuição dos lucros para o cumprimento dos propósitos do progresso material do desenvolvimento. Essa alternativa está numa outra lógica que advém do entendimento de como as pessoas no plano local tendem a resolver seus problemas econômicos de forma sustentável.
É, pois, no ambiente da antropologia e disciplinas afins que o tema tem encontrado maior volume de pesquisa, uma vez que, via de regra, tais pesquisas perpassam pelos sistemas sociais e culturais de grupos étnicos, particularmente de grupos indígenas e outros que mantém estreitos laços de interdependência com a natureza, como são, por exemplo, as comunidades remanescentes de quilombos, grupos extrativistas e ribeirinhos.
Neste campo de pesquisa acadêmica autores como Melatti (2006), Diegues (2000, 2004), Diegues e Arruda (2001), Franchetto e Heckenberger (2001), Maldi (1998), Schwartzmann e Zimmermann (2005), Little (2002) e outros destacam diversas vertentes de observação de sistemas culturais de povos indígenas e seus impactos sobre o equilíbrio ecológico.
A pesquisa sobre os povos xinguanos e mais particularmente sobre as 10 etnias do Alto-Xingu tem, desde as suas origens etnográficas do Sec. XIX, desde Karl Von den Steinen, sido influenciada pelas descrições dos diversos autores sobre as formas de suprimento de necessidades básicas pelos grupos indígenas, especialmente a adoção de práticas de gestão de território, uso, seleção, melhoramento e povoamento de espécies da flora e da fauna.
Por sua vez, no campo do direito ambiental as pesquisas acadêmicas, mais esparsas e iniciantes, geralmente realçam aspectos de relevância da proteção dos conhecimentos tradicionais com base nos conceitos formulados no ambiente legislativo em torno do avanço do marco legal da proteção dos conhecimentos associados à biodiversidade. Este enfoque evoluiu a partir da edição da Lei 9.985/2000 que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e regulamentou a criação e a gestão das unidades de conservação, assim como da  Medida Provisória 2.186-16/2001 que dispôs sobre o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional em território nacional.
Esta vertente da pesquisa foi mais recentemente impulsionada pela necessidade de buscar mecanismos formais de controle de práticas dilapidatórias contra o patrimônio biológico. Nesta área de interesse - o saber dos povos indígenas e comunidades locais associado à biodiversidade - vem despertando interesse de inúmeros pesquisadores independentes, como também de indústrias biotecnológicas, na medida em que acessar grupos detentores de conhecimento especializado tornou-se fator competitivo. Comunidades indígenas e locais passaram a ser foco de atenção em razão da constatação de que seus conhecimentos acessados e utilizados, sem ou com seu consentimento e compensação, representam enorme vantagem competitiva para o desenvolvimento de produtos e processos produtivos.
Em contra-reação este interesse sobre o conhecimento tradicional passou a ser alvo de debates, ao ponto de, em 1992, a Convenção sobre Diversidade Biológica, realizada no Rio de Janeiro, ter reconhecido a necessidade da proteção dos recursos da biodiversidade e os conhecimentos associados.
O tema chegou a receber status de alto interesse na pauta das discussões sobre a propriedade intelectual em fóruns como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), onde se procura compatibilizar o sistema de patentes com o conhecimento dos povos tradicionais.
É em meio a estes debates e pesquisas que surgiu a proposta de criação de um regime sui generis de proteção, diferente de tudo que já se pensou, para priorizar as características de povos indígenas e comunidades locais e de suas inovações e práticas, levando em conta fatores como a natureza intergeracional, coletiva e oral dos conhecimentos.


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