Direito & Planejamento e Gestão Socioambiental

SAÚDE INDÍGENA - MUDAR PARA AVANÇAR

Villi Seilert
31/04/2004
Em: http://www.socioambiental.org/website/noticias/indios/saude_indigena.htm


Mais uma vez, desta feita sob chamada aos efeitos de duas portarias editadas pelo Ministério da Saúde que regulamentam as "Diretrizes do Modelo de Gestão da Saúde Indígena" (Portaria nº 70 de 20 de janeiro de 2004) e Cria o "Comitê Consultivo da Política de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas" (Portaria nº 69 de 20 de janeiro de 2004), estamos diante de definições que poderão marcar importante passo para os Distritos Sanitários Especiais Indígenas - DSEI. Essa é a expectativa a partir de uma reunião promovida pelo Ministério da Saúde/FUNASA/DESAI com as diferentes organizações não-governamentais que celebram convênios de saúde indígena, nos dias 02 a 06 do mês de fevereiro.

Faz sentido recolocar que desde maio de 1999, quando transferida efetivamente à alçada do Ministério da Saúde, a saúde indígena vive uma experiência sui generis.

Avança na superação do déficit histórico de assistência básica aos povos indígenas com instalação de rotinas de serviços básicos, estruturada em metodologia análoga ao programa de saúde da família e com o suporte operacional das organizações indígenas e organizações da sociedade civil.

Nestes quatro anos opiniões das mais diversas fontes foram emitidas, sempre variando do ponto de vista de quem, do interesse representado e da proximidade com que estes arautos têm ou tiveram com a questão indígena ou com o labor específico da saúde indígena. De forma geral, na maioria deles se extrai o consenso de que o sistema ganhou visibilidade, porém encontra-se diante de impasses, especialmente no que diz respeito à sua gestão.

Na verdade, encontramos mais uma vez num dos cruzamentos típicos de transição governamental, quando o que entra, olhando para traz chega a conclusão que mudanças substanciais devem ser tomadas.

As mudanças são indispensáveis, especialmente quando promovidas para produzir efeito positivo sobre as deficiências diagnosticadas. Ocorre que, a considerar os comentários prévios dos operadores do sistema, bem como os pronunciamentos divulgados pela imprensa, tais mundanças poderão incorrer em risco de, naquele cruzamento decisório, produzir novos erros ou agravos em outros já existentes.

Chamo a atenção, a titulo de exemplo, matéria publicada num jornal da cidade de Cuiabá no dia 27/01/04, no qual sob o título "Funasa assume saúde, mas não exclui as ongs". São seria apenas mais uma notícia regional, se não refletisse a posição circulante e recorrente do DESAI e Coordenações regionais da Funasa, cujo espírito ainda que correto, indica erro de gestão pública e desvio político na relação com instituições jurídicas de direito privado, por conseguinte grave operação de desvio jurídico na administração pública.

O problema vem enunciado na referida matéria, nos seguintes termos: "Caberá a elas (as ongs) apenas a contratação de médicos e enfermeiros, que o órgão federal é impedido de fazer diretamente. Os recursos que até então eram repassados para as contas das ongs ficam nos cofres da coordenação regional da Funasa ..."

Em que pese todos os problemas operacionais, o nó critico de gestão está exatamente aí colocado, desde o início. Mais uma vez ficamos à frente do problema que sustentou as principais dificuldades até aqui verificadas na relação convenial. O mesmo coincide com a própria justificativa adotada quando da mobilização do modelo de parceria ( ou terceirização, como preferem outros) que foi até a presente data executado.

Três opções de operacionalidade têm estado à mesa do governo, mas nenhuma delas efetivamente foi aplicada com rigor. Vejamos as três:

Execução direta
Desnecessária explicitar, pressupõe em todos os seus termos, a ação direta dos órgãos públicos. A radicalidade desta opção é a execução dos serviços à próprias mãos ou à gestão direta do serviço público.

Tal hipótese foi descartada pelo poder executivo, ainda que preferenciada pelos seus servidores.

Execução tercerizada:
A opção da chamada terceirização, tem alimentado sérias controvérsias, e por conseguinte, alimentado erros, especialmente porque não levado a rigor as suas implicações jurídico-administrativas. Não por outras razões, a depender do locutor e as circunstâncias, são adotadas as expressões "parcerias" (evocando espírito convenial, encontro de vontades de partes distintas para a ação pública), ou simplesmente "contratação" (supondo contratos administrativos nunca existidos), ou mais correntemente simplesmente "terceirização", geralmente a colagem adotada por locutores que remetem apressadamente ao entendimento de que nos convênios celebrados pela Funasa estaria ocorrendo processo de delegação de prerrogativas exclusivas do poder público às ongs.

É de boa hora a iniciativa do Ministério da Saúde em editar as duas citadas portarias para regular as relações na gestão da saúde indígena e o funcionamento de um comitê de gestão da saúde indígena, podendo assim iniciar correção de falhas da gestão do modelo de organização dos DSEI.

As iniciativas poderão complementar pelo menos dois institutos jurídico-administrativos já disponíveis para viabilizar a implementação dos DSEIs, dentro de cenário de cooperação com as organizações não-governamentais: os Convênios e os Termos de Parceria.

O primeiro foi precariamente adotado pela adminsitração pública desde o inicio da implantação dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas, pais afora. Precariamente, porque foi utilizado, como se pudesse ocorrer, apenas como letra ou regra em branco, com vacâncias na pactuação das responsabilidades, e desacompanhados de instrumentos administrativos de planejamento e operacionalidade efetivamente versáteis para o caso das especificidades verificadas na saúde indígena.

Também vale acentuar que convênio "é acordo, mas não é contrato". Diferente do contrato, nos convênios têm-se partícipes que propugnam por objetivos de interesses comuns. (Hely Lopes Meirelles - Direito Administrativo, p. 354).

Embora seja apropriado, o convênio faz-se perfeito se acompanhado dos atos de ajuste e de pactuação real, remetendo-os ao seu próprio corpo formal através de definições das obrigações e seus limites, para ambos os entes.

De qualquer forma, sem aprofundar o seu mérito doutrinário, quero apenas destacar que o convênio é forma jurídico- administrativa apropriada para a consecução de interesse de atos de parceria e cooperação entre entes públicos ou com sociedades sem fins lucrativos, desde que sob amplo e visível interesse público, perfeitamente pactuados e determinados por vontade política e força operacional para tal.

Entendido assim, não se pode adotar modalidade de convênio para executar relação típica de contratos. Também não se poderia adotá-lo para fazer coisa adversa que não cabe em qualquer lugar comum da adminsitração.

3. O Termo de Parceria
Recentemente, buscando reordenar relações de cooperação executiva entre o setor público com a sociedade civil, o poder executivo fez gestão para o advento da Lei 9.790 de 23/03/99, pelo qual "fica instituído o Termo de Parceria, assim considerado o instrumento passível de ser firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público destinado à formação de vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de interesse público ... "

O Termo de Parceria firmado de comum acordo entre o Poder Público e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público deverá discriminar direitos, responsabilidades e obrigações das partes signatárias.(Art 10).

Pelos indicativos que a própria lei oferece, permite dizer que o Termo de Parceria, a título de exemplo vem oferecer mecanismos de prestação de contas mais céleres e simplificados, sem perder as exigências essenciais.

O que costuma inquietar as organizações parcerias é que essas prestações de contas tendem ao formalismo e acabam por não comprovar, em momento algum, se os objetivos do convênio foram alcançados.

De qualquer forma, com relação às OSCIP e os Termos de Parceria, vê-se que o estado que os promulgou é o mesmo que não os coloca em prática.

Permeia entre os órgãos da adminsitração o senso de que, seja quais forem, os primeiros termos de parceria, por falta de exemplos, tendem a reproduzir as mesmas práticas dos convênios, por conta de hábitos antigos e consolidados.

Assim, o administrador público que tenha coragem de fazê-lo também deve medir a real eficácia dos métodos no estágio em que se encontram, uma vez que não há experiência anterior.

Como vemos, nem um das três opções foi efetivamente adotada pelo poder público durante o período de transcurso da experiência dos convênios de saúde indígena. Ao invés de uma delas, ao que nos parece, a adminsitração pública, sob olhos vedados de seus operadores jurídicos, preferiu andar até aqui, ainda que sob cobertura de bom senso, criando infindáveis casuísmos para fugir à radicalidade do caminho certo, porque trabalhoso.

Ora, as principais decisões já foram sanadas: na primeira, o estado decidiu implementar um programa de saúde indígena, ancorando-o ao sistema público de saúde, observando as especificidades etno-culturais e geográficas das populações indígenas.

Na segunda encontrou-se base orçamentária suficiente para executar essa vontade, com importante eco nas principais autoridades monetárias do governo ( vide o incremento orçamentário da saúde indígena previsto para o ano de 2004, da ordem de 30%, com previsão de aproximadamente 260 milhões de reais). E na terceira elegeu e fez público, através de pronunciamentos inclusive do mais alto mandatário e de seu ministro de estado, a preferência em estabelecer regime de parcerias com organizações da sociedade civil na implementação de políticas públicas de alta capilaridade social.

Pois bem, nesse momento de definições, será razoável assumir com radicalidade (de legalidade inclusive) as conseqüências de qualquer opção pela execução das chamadas parcerias com as organizações indígenas e outras sociedades sem fins lucrativos. E as opções não são muitas, mas claras nos seus termos formais e suas aplicações jurídicas e operacionais.

Neste caso não parece saudável a via do subterfúgio nas operações de relacionamentos com as ongs, que aqui e acolá ganham feições de uma espécie de "operação laranja" da execução direta, nas ações da saúde indígena.

Assim, vê se que, mesmo havendo firme determinação em executar o sistema de saúde indígena, deve-se imprimir a mesma determinação para as implicações jurídicas, administrativas e operacionais sobre as mesmas, inclusive à radicalidade da obediência às implicações próprias dos regimes de cooperação e parceria.

Daí a importância da elaboração de tais instrumentos administrativos de detalhamento de tais obrigações, limites de responsabilidades, pessoal qualificado nos atos de responsabilidade sanitária, fluxogramas de gestão, bem como da eficiente atuação do proposto comitê consultivo de gestão da saúde indígena


Villi Fritz Seilert: Advogado, 41, Diretor de Políticas Institucionais do Instituto de Apoio ao Desenvolvimento Humano e do Meio Ambiente - TRÓPICOS e coordenador do Projeto de Saúde Indígena convênio Funasa/Trópicos/DSEI Cuiabá 1999-2004.


 


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